oiê!
só um continho... de terror!
um dos meus gêneros preferidos de filmes e livros é terror! até tenho um conto publicado na amazon com esse tema. escrever contos de terror é quase terapêutico para mim (não me peça para explicar kkkk).
o conto Fome, por exemplo, foi escrito para participar de uma antologia de terror sobre um vírus que transforma as pessoas em zumbis. sim, foi escrito em 2020, durante a pandemia, como você adivinhou?
infelizmente, não há mais exemplares dessa antologia disponíveis para a venda. então trouxe a história para você hoje.
boa leitura!
Fome
Por sete dias e sete noites, Janaína chorou. E, durante todo esse tempo, o sangue permaneceu em seus dedos magros.
Não comeu nada e bebeu pouco. Dormiu menos ainda. Esperava a morte, isso era fato. No entanto, esse presente não lhe foi dado. Janaína sobreviveu a tormenta febril e, na manhã do oitavo dia, acordou diferente. Sentia-se diferente, com algo agitando-se em seu âmago.
Era fome.
A mulher se endireitou, levantando-se do colchão puído, que, na falta de uma cama, permanecia ao chão. Dirigiu-se ao banheiro, sentindo cheiro de mofo. Durante toda a semana, as janelas permaneceram fechadas e a umidade invadiu o ambiente. Talvez devesse limpar o lugar, mas seu único ato foi abrir o vitrô, permitindo que os barulhos da cidade entrassem junto com uma lufada de ar.
Ficou alguns segundos escutando a música que vinha de um dos apartamentos ao lado. Era uma coisa tão comum, tão ordinária. Totalmente deslocada nesse mundo novo. A mulher quis se sentir incomodada com a falta de empatia das pessoas em se divertirem enquanto tantos outros estavam morrendo, mas nenhum sentimento veio à tona. Então, deu de ombros e voltou ao seu objetivo original.
Depois de tirar a roupa, Janaína entrou no box e deixou a água gelada limpar a sujeira dos últimos dias. Não havia aquecimento, mas não tinha problema. Seu corpo já se acendia, ansioso. A chama que a consumiu durante uma semana queimava por dentro, mas de uma maneira boa. Algo mudou dentro de si nos últimos dias e agora só lhe restava aceitar o que é a fome lhe traria.
Uma semana atrás, Janaína se enfurnara em um beco atrás de um dos únicos restaurantes que ainda estavam abertos, para procurar comida. Já fazia um tempo que vasculhava latas de lixo atrás de alimento, antes mesmo do mundo virar um verdadeiro inferno. Às vezes, conseguia surrupiar um pão velho, alguns vegetais podres. Não era um banquete, mas era melhor que nada.
Naquela noite, sentiu uma presença atrás de si e seu corpo se retesou de medo. Sequer conseguiu ver o que a espreitava, pois foi empurrada até a parede e depois disso tudo o que sentia era dor. Alguém a mordia, como um canibal. Ela se odiou por pensar que estaria à salvo das maldades daquele mundo novo, uma vez que ninguém parecia prestar atenção nela.
No meio da dor, algo chamou a atenção do seu agressor, pois Janaína sentiu o corpo ser largado no chão do beco. Ele a deixou para morrer e fugiu pela escuridão. Talvez estivesse indo atrás de outra presa, ao perceber que a mulher não passava de um saco de ossos. Canibais gostavam de carne, certo? E isso era algo que ela não podia oferecer.
Porém, Janaína não morreu e, de alguma forma, conseguiu voltar para casa. Agora estava cheia de cicatrizes ovais e se descobriu com fome.
Janaína se lavou, traçando com os dedos as marcas deixadas pelo agressor, e então desligou a água. Saiu enrolada na toalha velha e meio suja, que também cheirava a mofo, e parou em frente ao espelho. Não se reconheceu.
O rosto magro com bochechas proeminentes ainda era o mesmo. Os lábios rachados e esbranquiçados, revelando a falta de nutrição, também lhe eram comuns. O nariz comprido e fino continuava igual.
Mas eram os olhos. Seus olhos, normalmente castanhos, estavam um tom mais escuro, quase pretos. E estavam ferozes, cheios de vida, coisa que ela não sentia há anos, desde que começara a usar drogas e perdera todo o resto — desde antes. Quando os encarou, Janaína não viu mais a mulher pobretona que só não fora expulsa do apartamento por descuido das autoridades (novamente, coisas de antes. Agora, não existia mais autoridades. Ninguém conseguia controlar a epidemia). Não era mais a pessoa que vagava pelas ruas pedindo esmola e vasculhando lixo para encontrar o que comer.
Ao se olhar, viu uma mulher poderosa.
Um sorriso sinistro surgiu em seu rosto. A fome se agitou dentro de si.
Janaína voltou para o quarto. Revirou as únicas cinco roupas no armário até encontrar algo discreto e que não estivesse tão rasgado. Então deixou sua casa.
No mundo de agora, quase ninguém arriscava sair na rua. As calçadas estavam desertas, mas vez ou outra Janaína via um carro atravessar a avenida a toda velocidade. Ainda existiam pessoas que não acreditavam que as coisas mudaram. Elas desafiavam a realidade, chamavam os noticiários de comunistas mentirosos.
Seu corpo havia mudado durante a semana em que ficara se contorcendo no colchão, e isso além da aura de poder que emanava. Janaína sentiu os músculos firmes se esticando conforme caminhava, impulsionando-a como se tivessem vida própria e quisessem mostrar sua força. Seus olhos pareciam enxergar tudo mais nítido. As coisas estavam mais vivas, mais intensas.
Andou à esmo pela cidade. Não sabia exatamente o quê estava procurando, só queria acabar com a fome.
Então ouviu. Batidas de um coração assustado. Outra mudança em seu corpo. Como ela podia escutar tão bem? Sua cabeça se virou instintivamente para o lado de onde vinha o som. Seus dedos se fecharam em punho e um sorriso sinistro surgiu em seu rosto.
Era como se seu cérebro estivesse funcionando em modo automático. Virou a esquina, deixando os instintos e o ouvido lhe guiarem pelas ruas cada vez mais escuras. O sol estava se pondo, mas isso não seria um problema para Janaína.
Caminhou rápido, mantendo-se silenciosa e se misturando as sombras. Não foi tão difícil, foram poucos os que restaram para espiar pela janela.
O som aumentava à medida que ela se aproximava. Sua boca salivou. Estava perto, tão perto… Janaína se sentia como uma predadora indo atrás da sua caça.
De onde vinham aqueles instintos animais? Bom, realmente não importava. Tudo que ela queria era acabar com a fome.
Finalmente avistou a origem do som. Atrás de umas árvores, escondida em um barraco improvisado, havia uma mulher loira e suja, com roupas em pior estado que as de Janaína. A praça era sua casa, dava para perceber.
Sem pensar, Janaína avançou, deixando todo o seu lado primitivo, aflorado após os terríveis sete dias, tomar conta. A mulher segurava uma faca, mas não foi rápida o bastante para impedir que Janaína se jogasse em cima dela.
Com um grito abafado, as duas caíram sobre um colchão velho, muito parecido com o que Janaína dormia. Uma parte sua pensou que era dessa forma mesmo que acontecia: aqueles que não tinham casas, que eram quase invisíveis aos olhos da sociedade, eram os primeiros a se foder. Janaína era a prova viva disso, e estava disposta a mostrar seu ponto para a pobre coitada.
As duas se engalfinharam por alguns instantes. Janaína não sabia lidar com essa nova força que lhe preenchia o corpo, por isso demorou vários segundos para se acostumar.
Neste meio tempo, a mulher conseguiu soltar um braço e pressionou a faca na lateral do corpo de Janaína, que uivou de dor. Com a raiva funcionando como combustível, desferiu um soco tão forte no rosto da oponente que esta chegou a revirar os olhos. Aproveitou para tirar a faca da sua mão.
Janaína segurou o objeto com contemplação. Sem pensar, passou a lâmina afiada pelo braço exposto da mulher, que simplesmente se remexeu, ainda desacordada pelo golpe. Sangue surgiu em sua pele branca e, com delicadeza, Janaína passou os dedos pelo líquido vermelho, fascinada.
Finalmente, percebeu que a fome que sentia não era de comida. Não era para saciar uma necessidade que outrora lhe foi básica.
Não, sua fome era de sangue.
Admitir isso para si mesma foi como se libertar. Janaína empunhou a faca e encarou a mulher desacordada. Gostaria que ela estivesse consciente para ver o que lhe aconteceria a seguir, mas não iria esperar.
Atacou o rosto da mulher, enfiando a faca certeiramente em seu olho fechado. Sua presa se debateu e Janaína sorriu, enquanto observava o sangue escorrer pelo rosto da mulher. Não ia ter pressa de acabar com aquilo.
Afinal, sua fome queria saborear a dor da outra.
curiu? então encaminhe esse e-mail para um amigo que também gosta de histórias de terror.
um grande abraço,
julia